Revista Fapesp
José Tadeu Arantes
11 de julho de 2016
Um problema que há 10 anos permanecia sem solução no campo da física nuclear de altas energias acaba de ser resolvido por meio de simulação computacional. Trata-se do padrão de distribuição dos jatos produzidos nas colisões de núcleos pesados no interior dos dois maiores colisores de partículas da atualidade, o Large Hadron Collider (LHC), na Europa, e o Relativistic Heavy Ion Collider (RHIC), nos Estados Unidos.
Artigo descrevendo o resultado acaba de ser publicado na Physical Review Letters: “Event-by-Event Hydrodynamics+Jet Energy Loss: A Solution to the RAA⊗v2 Puzzle” .
Jorge Noronha, professor no Instituto de Física da Universidade de São Paulo, participou do estudo, no âmbito de sua pesquisa “Relativisitic heavy-ion collision dynamics – macroscopic approaches derived from microscopic physics”, apoiada pela FAPESP.
“Descobrimos que as flutuações de origem quântica nas condições iniciais líquido são o ingrediente necessário para explicar o padrão elíptico exibido pela distribuição angular das partículas geradas nas colisões”, disse Noronha à Agência FAPESP.
O líquido mencionado pelo pesquisador é o plasma de quarks e glúons, que, segundo o modelo teórico padrão, teria preenchido o universo durante um diminuto intervalo de tempo após o Big Bang. Esse meio tem sido recriado, nos dois grandes colisores da atualidade, pelos choques ultrarrelativísticos de núcleos atômicos – isto é, em velocidades próximas à da luz.
A temperatura gerada nessas colisões é tão alta que os quarks e os glúons que estavam confinados no interior dos prótons e dos nêutrons dos núcleos atômicos se desprendem e, durante um exíguo intervalo de tempo, passam a se mover livremente. Trata-se de um meio muito pequeno, cuja extensão é pouco maior do que o diâmetro do próton. Vale lembrar que o diâmetro do próton é da ordem de grandeza de 10-15 metro. Esse meio comporta-se como um fluido quase perfeito, que praticamente não oferece resistência ao deslocamento das partículas que o compõem.
“Existem duas ‘assinaturas experimentais’ especialmente importantes a respeito do plasma de quarks e glúons. A primeira é o chamado ‘fluxo elíptico de hádrons’. Isso diz respeito à distribuição angular das partículas geradas a partir das colisões. Depois que o sistema é formado, e que os quarks e glúons voltam a se aglutinar em hádrons [prótons, nêutrons, mésons etc.], os detectores registram os ângulos segundo os quais essas partículas reconfiguradas chegam a eles. E percebe-se que há ângulos preferenciais, cujo conjunto define vários padrões, sendo o padrão elíptico predominante”, informou o pesquisador.
“A segunda assinatura é chamada de ‘atenuação de jatos’. Quando um jato, constituído por um quark ou um glúon em velocidade próxima à da luz, transita no interior do plasma, ele é freado pelo meio e perde energia. Por mais de 10 anos, os especialistas na área tentaram entender como essa perda de energia levava à distribuição angular observada. Mas não obtiveram sucesso. Foi isso que conseguimos fazer agora, combinando a física de jatos com a hidrodinâmica para descrever a situação real de um jato deslocando-se no interior de um meio que, ele mesmo, se expande quase à velocidade da luz”, acrescentou.
Padrões de distribuição das partículas
O padrão elíptico não é o único possível. De fato, existem vários padrões de distribuição angular das partículas: elíptico, triangular, quadrangular etc. O que se faz é decompor as distribuições possíveis em um tipo específico de sequência matemática, conhecida como série de Fourier. Isso permite saber quantas partículas obedecem a cada padrão. E o padrão elíptico é o predominante. A questão era explicar por quê. Foi exatamente isso que a introdução das flutuações quânticas no modelo permitiu fazer.
“Os núcleos atômicos que são levados a colidir constituem-se de prótons e nêutrons. Mas os prótons e nêutrons não se encontram imóveis no interior de cada núcleo. Eles se movem dentro de um pequeno volume. Portanto, a distribuição de energia no interior do núcleo, que fornece as condições iniciais para o problema, não é uniforme. Ela flutua o tempo todo. E isso dá uma ideia do que chamamos de flutuações quânticas”, explicou Noronha.
Convém destacar aqui um dos pilares da física quântica, que é o Princípio da Incerteza, de Heisenberg. Segundo esse princípio, não é possível determinar simultaneamente de maneira exata a posição e a velocidade de cada partícula. Quando se determina a posição, a velocidade torna-se altamente incerta. E, quando se determina a velocidade, é a posição que se torna incerta. O conceito de flutuação quântica está intimamente associado ao Princípio da Incerteza.
Ademais, dentro dos próprios prótons ou nêutrons, os quarks e os glúons estão igualmente em movimento. E não apenas isso. Existe também um processo incessante de produção e aniquilamento de pares de partículas e antipartículas. Grosso modo, segundo o modelo padrão, o próton é formado por três quarks. Mas, para usar uma analogia, isso é apenas a fotografia estática de algo extremamente dinâmico. Uma imagem mais apropriada seria comparar cada próton a um minúsculo e agitado oceano de energia, no qual quarks e antiquarks são produzidos e destruídos o tempo todo. “Na verdade, o próton é uma realidade muito complicada, que só agora estamos começando a compreender. Há vários modelos diferentes que buscam descrevê-lo”, comentou o pesquisador.
Resumindo: a situação é a de um sistema, o plasma de quarks e glúons, com densidade de energia muito alta, semelhante à do universo primordial. Um sistema em flutuação, no qual transitam jatos de partículas em velocidades próximas à da luz. Estes perdem energia ao transitar. A detecção experimental das partículas resultantes mostra que a sua distribuição angular segue preferencialmente um padrão elíptico. “Introduzindo as flutuações quânticas nas condições iniciais usadas nas simulações computacionais, foi possível chegar, pela primeira vez, a um resultado compatível com o padrão experimentalmente observado”, enfatizou Noronha.
“Esse cálculo envolveu várias camadas de teoria. Foi preciso considerar a densidade inicial de energia do sistema; considerar também como, a partir de cada condição inicial, o sistema evolui, expandindo-se em velocidades próximas à da luz; e considerar ainda como cada jato de quark ou glúon perde energia dentro desse meio. Devido às flutuações, é necessário fazer a simulação evento por evento, considerando várias densidades iniciais de energia. Isso significa rodar centenas de simulações. E, depois de tudo isso, calcular a distribuição estatística das várias simulações para chegar a algo próximo do comportamento real”, detalhou o pesquisador.
As simulações foram rodadas em computadores da Universidade de Columbia, da Universidade de Frankfurt e da Universidade de São Paulo (USP). E o resultado obtido mostrou-se consistente com os dados experimentais. “Além do cálculo do fluxo elíptico, fizemos também, pela primeira vez, o cálculo do fluxo triangular de partículas com energia alta. Esse fluxo só é diferente de zero quando se incorporam flutuações quânticas”, finalizou Noronha.
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