Especial para o Blog SindCT Espacial
Antonio Biondi
21 de setembro de 2016
Foto: Vitor Vogel- Laura Tavares RBA -7117 |
A ‘nova’ Reforma da Previdência e os interesses envolvidos: “Alguém sairá beneficiado — os bancos e fundos privados”, diz Laura Tavares
Em entrevista exclusiva realizada no início de setembro para o Jornal do SindCT, Laura Tavares, professora aposentada da UFRJ e Doutora em Economia do Setor Público na área de Políticas Sociais do Instituto de Economia da Unicamp, explica o que o novo governo pretende ao mexer novamente com a Previdência do país. Além dos interesses e objetivos envolvidos, Laura explica as consequências que as medidas podem trazer para a vida da população - e o que poderia e deveria ser feito. Antes de se dedicar à Economia, Laura Tavares foi sanitarista e atuou na área de Saúde Pública do país. Em 1985, quando Waldir Pires era ministro da área, participou da universalização do antigo INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), medida adotada ainda antes da Constituição Federal de 1988 e que permitiu posteriormente a criação do SUS. Atualmente, trabalha na FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) – Brasil.
Professora, é correto falarmos em Déficit da Previdência? Ou existe alguma armadilha nessa discussão?
Não, não está correto falar em déficit da Previdência. Essa análise é recorrente desde o início dos anos 90, isolando a Previdência da Seguridade Social, que não conseguiu consolidar-se nem na prática e nem na questão do financiamento – prevaleceu a visão setorial. A Constituição Federal de 1988 inovou ao aprovar a instituição de um sistema de Seguridade Social. A grande novidade, algo que pouca gente sabe, é que o financiamento desse sistema, que inclui a Previdência, se dá não somente com base na folha de salários (trabalho), mas também sobre o capital, instituindo as contribuições sobre o faturamento (Cofins) e sobre o lucro líquido das empresas (CSSLL) . Ou seja, as fontes de recursos da Seguridade foram diversificadas de modo pioneiro pelo Brasil, mantendo o Orçamento da Seguridade Social superavitário.
Como é isso em outros países?
Nenhum país do mundo sustenta a sua previdência somente com as contribuições do trabalho. Especialmente em um cenário de precarização do trabalho, de diminuição do emprego formal e de desemprego que o mundo atual apresenta. O Brasil resolveu isso desde 1988 ao incluir as contribuições sobre o capital. E desde então, a receita da Seguridade Social tem crescido sempre acima do PIB.
Para você ter uma idéia, em 2014 a Seguridade apresentou superávit (receitas menos despesas) de 53,9 bilhões de reais. Em 2013, esse montante havia sido de 76 bilhões. E em 2012 passara de 80 bilhões de reais! Se tomarmos toda a série da Seguridade Social desde que ela existe com base no financiamento a partir dessas contribuições, a receita dela sempre foi superavitária. A Seguridade Social no Brasil, que inclui a Previdência, Saúde e Assistência Social é, portanto, perfeitamente “sustentável” (como gostam de dizer os economistas).
Sempre se tentou mexer, especialmente os parlamentares financiados pelas empresas e os governos neoliberais, nas contribuições sobre o faturamento e sobre o lucro líquido dessa base de financiamento, o que tornaria o modelo, aí sim, deficitário e “insustentável”.
Como a formalização do trabalho (que tinha avançado bastante no período 2003-2013) e a economia pioraram em 2015 e 2016, além do aumento do desemprego (apesar de continuar em patamares muito abaixo da maioria dos países, inclusive os chamados desenvolvidos), certamente haverá uma piora na parte do financiamento que diz respeito à folha de salários. Mas o lucro e o faturamento praticamente não caem. O empregador manda embora o trabalhador para não diminuir o seu lucro e o seu faturamento!
A desoneração da folha de salário – que foi feita pelo governo Dilma, na tentativa de que as empresas mantivessem o emprego, e que depois foi revista – afeta diretamente a receita da Previdência relativa à contribuição previdenciária exclusiva. Ao mesmo tempo, os empresários querem desonerar a folha alegando “falta de competitividade”, reduzindo a principal fonte de receita da Previdência, e aí querem fazer uma reforma para atacar um suposto déficit causado pelos “gastos excessivos” nos benefícios previdenciários. Este é sempre o argumento. A suposta solução é sempre pelo corte dos gastos – o que provoca redução ou retirada de direitos – e nunca pelo aumento da receita. Alegam que a reforma é necessária, mas ao provocarem a diminuição da receita, pioram o cenário da Previdência que alegam querer melhorar.
Não existe déficit, portanto.
Precisamos afirmar de modo muito cristalino: não existe déficit. E as medidas propostas para uma reforma da Previdência agora, não vão significar nada em termos do ajuste fiscal imediato desejado. A única proposta que poderia ter efeito imediato seria desvincular o valor do piso dos benefícios do salário mínimo. Mas isso iria gerar um desastre social sem proporções no país.
Essa política da Previdência que vincula a grande maioria dos benefícios a um salário mínimo, que vinha subindo acima da inflação, beneficiava, em outubro de 2014, mais de 32 milhões de pessoas, transferindo renda e movimentando a economia de pelo menos 60% dos pequenos municípios. Um casal que more na área rural recebe R$ 1.736. Isso representa uma renda considerável no interior, inclusive maior que o próprio salário de muitos trabalhadores rurais.
A Reforma da Previdência tem história. Desde 1992, logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, portanto, o governo Collor já havia mexido em algumas coisas Em 1998, o governo Fernando Henrique fez reforma geral da Previdência, conseguindo aprovar no Congresso uma Emenda Constitucional. FHC, no entanto, tentou passar a questão da idade mínima e não conseguiu. Aí, inseriu a proposta do fator previdenciário, que acaba sendo algo muito próximo à idade mínima, pois inclui a expectativa de vida média no cálculo da aposentadoria, fazendo com que as pessoas, especialmente as que entraram cedo no mercado de trabalho – as de mais baixa renda – tivessem que trabalhar mais anos para receber o mesmo valor.
Agora, eles querem efetivamente implementar a questão da idade mínima, além de diminuir a diferença de idade entre homens e mulheres. Querem buscar uma igualdade de gênero que não é real. Que não é igual nem no mercado de trabalho nem na vida doméstica... Os mais prejudicados, caso essa linha venha a ser aprovada, serão os servidores da Educação e da Saúde, em sua grande maioria mulheres, com péssimas condições de trabalho e que começaram a trabalhar cedo.
De onde vem essa agenda? Por que ela surge nessa conjuntura, e a que interesses ela se destina?
Uma parte vem em decorrência da alegada necessidade do ajuste fiscal. Algo que o governo Lula fez, Dilma fez, FHC fez, todos fizeram. Por outro lado, as pessoas acham realmente – inclusive por uma campanha ideológica repetitiva desde o tempo do Collor - que servidor público é privilegiado. Em algumas carreiras isso pode até ser realidade, como no caso do Judiciário e de algumas estatais. Mas para a imensa maioria dos servidores, especialmente do Executivo, que respondem principalmente pelos setores da Educação e da Saúde, a realidade não é essa.
O interesse efetivo, portanto, é de jogar os trabalhadores do setor público para a previdência complementar, para o regime de capitalização individual – o que é um gigantesco retrocesso com relação ao regime de repartição, coletivo e baseado na solidariedade intergeracional.
E aqui vale o lembrete de que os novos servidores, a partir da Reforma de 2003 para o setor público, ainda no governo Lula, já vão entrar com o teto igual ao do Regime Geral da Previdência. O teto para contribuição e para o benefício.
Para os que já eram servidores à época, foi feito um regime de transição que já interferiu na aposentadoria dos servidores públicos, instituindo as idades mínimas de 55 anos para as mulheres e de 60 anos para os homens (à exceção dos professores e professoras do ensino básico). Acho que agora querem colocar 62 e 65 anos respectivamente, e com um regime de transição muito mais severo, draconiano até, o que obrigará as pessoas a trabalharem muito mais anos para se aposentar. Além de aumentar a idade para o regime de transição, a proposta é aumentar o tempo de contribuição.
Embora não seja sua área em termos concretos, professora, a senhora acredita que essa proposta possa passar no Congresso?
Essa é a grande questão no momento. Eu acredito que a questão da idade mínima, mesmo com a atual conjuntura e com o atual Congresso, seja muito difícil de passar. Então, vão acabar inventando alguma coisa, algum eufemismo, para ter um efeito prático semelhante. Que nem fizeram com o fator previdenciário em 1998.
O prioritário mesmo é entregar esse público todo, essa nova clientela, para a previdência privada. A previdência complementar está indo para o buraco em todos os governos que a adotaram nos municípios e nos estados. Inclusive em outros países, como no Chile, pioneiro na América Latina, e nos EUA onde sempre existiu, custou caríssimo para o Tesouro do país fazer essa transição. Para você ter uma ideia, no Chile houve um gasto equivalente a cerca de 25% do PIB para fazer a transição do modelo antigo para o novo, o qual sempre apresentou problemas e sempre teve que ser “ressarcido” por fundos públicos do tesouro chileno. Tal como nos EUA, onde o tesouro americano teve que salvar os bancos e os fundos privados de aposentadorias e pensões.
A questão central é: mesmo que se crie uma previdência complementar pública, para os servidores, de onde se vai tirar os recursos que dizem respeito ao empregador? Do governo também? Oras, isso vai aumentar mais ainda os déficits fiscais dos governos, que mal conseguem pagar os atuais servidores da ativa.
O regime de capitalização que se pretende ampliar agora no Brasil sempre deu problemas. O regime de repartição superou os antigos fundos de pensão, que nunca conseguiram pagar o equivalente ao que as pessoas contribuíam individualmente. O regime de repartição sempre foi mais seguro e estável, sobretudo no nosso caso, em que a Previdência faz parte da Seguridade Social desde 1988. Aliás, note-se que, assim como acontece no caso dos planos privados de saúde, já existe desconto no Imposto de Renda para a Previdência Privada. Isso é renúncia tributária. Que na prática é gasto tributário. Esse “novo tipo” de “mercado social” dos seguros privados de saúde e de previdência sempre dependem de incentivo por parte dos governos, quando não do subsídio direto, sempre com fundos públicos.
Capitalizar significa deixar o dinheiro investido para dar retorno mais à frente, correto?
A capitalização supostamente é isso. Você aplica o dinheiro e o plano de previdência privada, na prática, “aplica” seus recursos no “mercado”. Em um país suscetível aos investimentos externos como o Brasil, com um mercado tão volátil e instável, isso implica em riscos altíssimos. Até mesmo alguns especialistas do Banco Mundial já reconheceram, diante dos sucessivos fracassos, que o regime de capitalização é muito arriscado.
E isso se o fundo for privado. Se o fundo for público, quem vai pagar, garantir a capitalização e o retorno? É isso que quero saber. O Estado? Os fundos públicos? Os já considerados parcos recursos fiscais? O chamado “rombo” do governo só vai aumentar. Como ainda não foi regulamentada nem implementada para os novos servidores públicos, e o desconhecimento a respeito do assunto é geral, a previdência complementar pública ainda não mostrou sua verdadeira face.
O custo de administração dos fundos privados, aliás, é muitíssimo mais caro que o regime público unificado e de repartição, pelas altas taxas, riscos, necessidade de propaganda, etc. Não são, para nada, mais “eficientes” que a Previdência Pública. Não existe nenhuma garantia de retorno em termos de aplicação. É um contrato de risco, onde quem arca com os custos das perdas é o próprio contribuinte individual ou o fundo público.
Ao você instituir um teto único e por baixo para a Previdência Pública, você praticamente está obrigando a pessoa a buscar uma previdência complementar – pública ou privada. E todos os governos estaduais e municipais que possuem institutos próprios de previdência estão com graves problemas na administração financeira desses fundos.
Um aspecto fundamental a se colocar é que nos municípios e nos estados a grande maioria dos funcionários que atuam no setor público já são precarizados, onde as taxas de emprego formal são muito menores do que no caso da União. O resultado é que não contribuem para a sustentação da respectiva Previdência. Você sabia que, por exemplo na área da Saúde, a maioria dos trabalhadores do Programa de Saúde da Família contratados pelos municípios não são formalizados? No Rio de Janeiro, boa parte dos hospitais funciona por meio de OSs (Organizações Sociais), de natureza privada, onde não existe concurso, nem carreira nem formalização do emprego – que já deixou de ser público há muito tempo.
Aliás, quem inventou essas OSs, chamadas de “setor público não estatal” , foi a chamada Reforma do Estado perpetrada no governo FHC em 1995, a partir da qual a precarização dos servidores públicos se tornou um fato. Boa parte dos servidores federais foi recuperada pelos concursos públicos realizados no governo Lula, especialmente na área de Educação Superior (Universidades). Mas é só parar de contratar que desmonta novamente.
Desmontar é fácil. Portanto o problema está na não formalização dos servidores públicos, especialmente municipais e estaduais. Não há Previdência, nem pública nem complementar que se sustente sem a contribuição dos próprios servidores.
No âmbito federal, apesar de termos déficit no Regime Próprio dos Servidores Públicos (mesmo com a contribuição de 11% sobre o bruto dos aposentados federais), ainda temos as outras contribuições destinadas a sustentar a Seguridade Social como um todo. Algo que, mesmo diante das graves crises que enfrentamos nos anos 1990, com desemprego altíssimo, assegurou que a Seguridade tivesse receitas superiores às despesas em todos esses anos. Mas os Estados e municípios não contam com esses recursos.
Por que o Regime Próprio dos Servidores Públicos, isoladamente, apresenta despesas maiores que suas receitas?
Em parte porque o governo não recolhe a parte que ele deveria recolher para que esse regime não ficasse deficitário; e em parte pelo que dissemos acima: os ativos formais, mesmo do governo federal, ainda são insuficientes, tanto em relação à população e às necessidades do país, quanto em relação à contribuição previdenciária. A receita do Regime Próprio dos Servidores Públicos Federais equivale à cerca de 0,5% do PIB. E a despesa fica entre 1,05% e 1,07% do PIB. Em ambos os casos, os patamares, em relação ao PIB, são baixíssimos.
Para se ter mais recursos fiscais para a Previdência e para o Orçamento público, o caminho é se realizar uma Reforma Tributária progressiva e mais justa, e não mexer na Previdência.
Em suma, minha aposta é de o atual governo federal ilegítimo vai querer fazer a Reforma logo: aprovar a questão da idade mínima, ainda que por meio de algum subterfúgio, diminuir as diferenças dispensadas entre mulheres e homens – o que é um absurdo – e aplicar regras mais duras para o regime de transição. Vai ser uma verdadeira tragédia social.
Hoje, até o governo do Estado do Rio de Janeiro está com dificuldades para arcar com os salários, como vai assumir ainda mais obrigações com as aposentadorias? Como vai garantir a capitalização desses fundos?
Imagine então outros Estados com menos recursos e os municípios menores!
Nosso problema é de poucos servidores, de baixa formalização – no setor público e privado –, de contribuição insuficiente por parte do governo enquanto empregador, que é feita de forma aquém da necessária para a sustentação do regime. Emprego público não é gasto. É investimento. Gera emprego e renda.
Minha conclusão, enfim, é de que você vai migrar para algo que vai dar mais problemas e ter maiores dificuldades em sua sustentabilidade do que o regime atual. E que possui muito menos riscos do que esse que se pretende implementar. Mas, é claro, alguém sairá beneficiado. Os bancos e os fundos privados. O capital financeiro de sempre. Esse nunca perde.
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