05 de fevereiro de 2016
José Monserrat Filho *
“Tenham coragem. Não tenham medo de sonhar coisas grandes.” Papa Francisco
A AEB completa 22 anos de existência agora no dia 10 de fevereiro. Qual seria o melhor presente para festejar a data? É o que tento sugerir aqui.
A certidão de nascimento da AEB é a Lei nº 8.854, de 10 de fevereiro de 1994, sancionada pelo então Presidente Itamar Franco depois de aprovada pelo Congresso Nacional. Essa lei continua em plena vigência, ainda que com algumas atualizações.
Seu art. 1º anuncia algo histórico: “Fica criada, com natureza civil, a Agência Espacial Brasileira (AEB), autarquia federal vinculada à Presidência da República, com a finalidade de promover o desenvolvimento das atividades espaciais de interesse nacional.” E mais: o art. 2º dota a AEB de “autonomia administrativa e financeira, com patrimônio e quadro de pessoal próprios”.
Vale enfatizar: a AEB é órgão civil, não militar. Era o que pleiteavam entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a opinião pública em geral, após a democratização do país, em 1985. A AEB veio substituir – com nove anos de atraso, diga-se – a Comissão Brasileira de Atividades Espaciais (COBAE), criada em 1971 pelo regime militar para assessorar o Presidente da República. O Estado-Maior das Forças Armadas desempenhava papel central na COBAE.
A AEB tem ampla competência, que começa pelo dever de executar e fazer executar a Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (PNDAE) e propor sua atualização, bem como de elaborar e atualizar os Programas Nacionais de Atividades Espaciais (PNAE). O PNAE atual refere-se ao período 2012-2021. Ao todo, conforme o art. 3º da Lei nº 8.854, são 14 mandatos da AEB. Apenas para dar uma ideia deles, eis aqui os oito mais importantes:
“I – executar e fazer executar a Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (PNDAE), bem como propor as diretrizes e a implementação das ações dela decorrentes;
II – propor a atualização da Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais e as diretrizes para a sua consecução;
III – elaborar e atualizar os Programas Nacionais de Atividades Espaciais (PNAE) e as respectivas propostas orçamentárias;
IV – promover o relacionamento com instituições congêneres no País e no exterior;
V – analisar propostas e firmar acordos e convênios internacionais, em articulação com o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Ciência e Tecnologia, objetivando a cooperação no campo das atividades espaciais, e acompanhar a sua execução;
VI – emitir pareceres relativos a questões ligadas às atividades espaciais que sejam objeto de análise e discussão nos foros internacionais e neles fazer-se representar, em articulação com o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Ciência e Tecnologia;
VII – incentivar a participação de universidades e outras instituições de ensino, pesquisa e desenvolvimento nas atividades de interesse da área espacial;
VIII – estimular a participação da iniciativa privada nas atividades espaciais;...”
Não é pouca coisa. São mandatos de alta relevância para o desenvolvimento espacial do país. Ainda mais que os benefícios do espaço são hoje essenciais à vida normal de todos os países.
Não se pode confundir a Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (PNDAE) com o Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE). A PNDAE foi instituída pelo Decreto n.º 1.332, também firmado pelo Presidente Itamar Franco em 8 de dezembro de 1994, nove meses após a fundação da AEB. Elaborada pela própria AEB, a PNDAE estabelece objetivos e diretrizes para os programas e projetos da área espacial e tem no PNAE seu principal instrumento de planejamento e programação para períodos de dez anos. Ela nasceu, certamente, como parte do esforço do governo brasileiro para demonstrar aos países mais desenvolvidos que o programa espacial brasileiro era civil. O Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (Missile Technology Control Regime – MTCR), instituído em 1987, liderado pelos Estados Unidos e outras potências, bloqueou em 1988 a construção do VLS (Veículo Lançador de Satélites), parte essencial da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), anunciada em 1980. Acusação: o VLS seria na realidade um míssil de longa distância. Em resposta, o Brasil aderiu ao MTCR em 1995, um ano após a fundação da AEB e a aprovação do PNDAE, deixando claro que seu programa espacial era pacífico, e que o VLS não tinha pretensões a ser míssil.
O PNAE é elaborado pela AEB e aprovado pelo seu Conselho Superior. Composto por representantes de todos os ministérios ligados às atividades espaciais, nomeados pelo Presidente da República, o Conselho Superior da AEB tem extrema importância jurídica e operacional. Suas deliberações são fundamentais para a execução da PNDAE e do próprio PNAE.
“As atividades espaciais brasileiras serão organizadas sob forma sistêmica, estabelecida pelo Poder Executivo”, determina o art. 4º da Lei que criou a AEB. Ou seja, as instituições que realizam atividades espaciais devem funcionar de modo a constituir um sistema coerente, entrosado e cooperativo, ainda que cada uma delas mantenha sua autonomia.
Daí surgiu o Sistema Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (SINDAE), cerca de dois anos depois da AEB e da PNDAE, para “organizar a execução das atividades destinadas ao desenvolvimento espacial de interesse nacional”. O SINDAE tem base no Decreto nº 1.953, de 10 de julho de 1996, firmado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Embora haja dúvidas, críticas e certo ceticismo quanto à funcionalidade do SINDAE, esse decreto nunca foi debatido ou revisto e continua em vigor. Conformar-se ironicamente com “uma lei que não pegou” não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, estabelecido no art. 1º da Constituição Brasileira.
“O SINDAE é constituído por um órgão central, responsável por sua coordenação geral, por órgãos setoriais, responsáveis pela coordenação setorial e execução das ações contidas no Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) e por órgãos e entidades participantes, responsáveis pela execução de ações específicas do PNAE”, reza o art. 2º do Decreto nº 1.953.
O órgão central do SINDAE é a AEB e os órgãos setoriais são o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI); o Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) e seu Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), e os Centros de Lançamento de Barrera do Inferno (CLBI) e de Alcântara (CLA), todos vinculados ao Comando da Aeronáutica, do Ministério de Defesa (MD). Também são membros do sistema as universidades e as empresas da indústria espacial. O funcionamento do SINDAE é regulado por resolução normativa aprovada pelo Conselho Superior da AEB.
Cerca de 20 anos depois, em 2 de outubro de 2015, os então Ministros da Defesa, Jaques Wagner, e da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aldo Rebelo, criaram o “Grupo de Trabalho Interministerial para o Setor Espacial (GTI - Setor Espacial)”, pela Portaria Interministerial nº 2.151. Esse GTI tem por fim “assessorar, em caráter temporário, o Ministro de Estado da Defesa e o Ministro de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação nos trabalhos relativos ao aprimoramento do Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE), do Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) e da Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (PNDAE), a fim de organizar e dinamizar as atividades espaciais no Brasil como um Programa de Estado”.
O GTI - Setor Espacial também tem ampla competência:
“I - propor revisão do modelo de governança para as atividades espaciais no Brasil;
II - propor a revisão da legislação, no que couber, com vistas a:
a) formalizar um Programa de Estado para as atividades espaciais no Brasil;
b) propor um regime diferenciado de contratação de pessoal especializado do setor espacial; e c) propor um regime diferenciado para aquisição de bens, serviços, obras e informações com aplicação direta nos projetos e instalações do setor espacial;
III - apresentar proposta de revisão do PNAE para o decênio 2016-2025, harmonizando as diversas iniciativas espaciais em curso;
IV - propor um Projeto Mobilizador, para o período de cinco anos, visando fomentar o desenvolvimento da indústria nacional, quanto aos seus componentes basilares: satélite, lançador e infraestrutura de lançamento e operação;
V - identificar as necessidades e propor um plano de recomposição, readequação e ampliação dos quadros de pessoal especializado do setor espacial, no Comando da Aeronáutica e no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); e
VI - propor um plano de valorização e divulgação das atividades espaciais no Brasil.”
O GTI é composto por membros titulares e suplentes indicados pelo MD e MTCI, e sua coordenação está a cargo do Comando da Aeronáutica do MD, como reza a Portaria, acrescentando que os relatórios e estudos produzidos pelo GTI Espacial devem ser encaminhados ao MD pelo Comando da Aeronáutica, e ao MTCI pelo INPE. E mais: o GTI pode convidar representantes de outros órgãos ou entidades, públicas ou privadas, para participar de suas reuniões e opinar nas suas proposições, sem, contudo, gerar a obrigação de acatar as sugestões por eles emanadas.
Em momento algum a Portaria menciona a AEB, que, aliás, tomou ciência do GTI apenas pelo noticiário. Em termos legais, vale lembrar: uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República tem muito mais peso do que uma Portaria Interministerial. Essa não pode, de modo algum, ignorar ou desconhecer aquela. Há uma hierarquia clara e imperativa entre os instrumentos jurídicos. Trata-se de um princípio elementar do direito.
Todos os Ministros de Estado têm o direito de recorrer a portarias interministeriais, se e quando julgarem isso necessário, inclusive para criar grupos de trabalho conjuntos. O que não tem amparo legal é criar uma portaria interministerial que se coloque acima de uma lei federal em pleno vigor. Ainda mais quando a intenção manifesta é alcançar um nobre e elevado objetivo nacional: a criação de uma Política Espacial de Estado, antigo sonho da comunidade espacial brasileira.
Eis, então, a minha sugestão de presente de aniversário para comemorar os 22 anos da AEB: reconhecer a vigência da Lei nº 8.854, acatar o papel legal e legítimo da AEB, como ativa participante de qualquer plano de revisão da política e do programa nacional de atividades espaciais, e, como consequência natural, substituir a referida Portaria Interministerial MD-MCTI.
A alternativa disso seria ainda mais dolorosa: anular a Lei nº 8.854 e as que vieram a seguir (PNDAE e SINDAE), nela calcadas. Mas não é precisamente isso o que, na prática, parece estar acontecendo, bem diante dos nossos olhos e do nosso senso de justiça?
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
Fonte: Blog Panorama Espacial
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