quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Novo marco legal de C&T amplia privatização e expõe servidores

Jornal do SindCT
Antonio Biondi
5 de fevereiro de 2016






Sancionada por Dilma em 11/1/16, a lei 13.243 permite que “fundações de apoio”, “Organizações Sociais” e empresas se apoderem de institutos públicos de pesquisa e universidades federais e coloquem os servidores públicos a serviço de interesses privados. Desde 11 de janeiro, o Brasil passou a contar com um novo marco legal de Ciência, Tecnologia e Inovação: a lei 13.243/2016, sancionada naquela data pela presidenta Dilma Rousseff.
A nova legislação para o setor, que tramitou e foi aprovada no Congresso Nacional sob a designação de Projeto de Lei da Câmara (PLC) 77/2015, atende aos desejos dos lobbies que atuam pela privatização do setor de C&T, representados por entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira de Ciências (ABC), fundações privadas ditas “de apoio” e “Organizações Sociais” (OS).

Ao sancionar a lei, Dilma ignorou o apelo em sentido contrário feito por dezenas de sindicatos de pesquisadores científicos, professores universitários e outros grupos, contido em carta protocolada em 28/12/2015 no Gabinete Regional da Presidência da República de São Paulo.
Na carta, as entidades signatárias afirmavam considerar o então PLC 77/2015 “um grave retrocesso que poderá gerar efeitos avassaladores para a pesquisa pública brasileira” e, após exposição de motivos, pediam à presidenta da República que o vetasse na íntegra. “A nova lei é um descalabro”, resume Gino Genaro, secretário de comunicação e cultura do SindCT.

“Do começo ao fim, a lei mistura público e privado, seja por meio da possibilidade de servidores públicos virem a atuar de forma remunerada na iniciativa privada, seja pela cessão de infraestrutura das ICTs públicas a entes privados”, explica o dirigente. A lei 13.243/16 altera dispositivos de nove leis federais, nos termos da Emenda Constitucional 85/2015. Tal como a lei 10.973/2004, ela define universidades, órgãos e institutos públicos de pesquisa como “Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação” (ICT), portanto já introduzindo nesta designação um termo de natureza empresarial e mercantil (“inovação”), ao mesmo tempo em que sujeita tais organismos públicos a ceder infraestrutura e recursos humanos a empresas, organizações e projetos privados.
Ela permite que a União, os Estados, o Distrito Federal (DF), os Municípios, as respectivas agências de fomento e as ICTs cedam “o uso de imóveis para a instalação e a consolidação de ambientes promotores da inovação, diretamente às empresas e às ICTs interessadas ou por meio de entidade com ou sem fins lucrativos que tenha por missão institucional a gestão de parques e polos tecnológicos e de incubadora de empresas, mediante contrapartida obrigatória, financeira ou não financeira, na forma de regulamento” (nova redação da lei 10.973/2004: inciso I do § 2º do artigo “3º-B”, no artigo 2º da lei 13.243/16; destaques nossos).
Mais ainda: União, Estados, DF, Municípios, ICTs e agências de fomento “promoverão e incentivarão a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços e processos inovadores em empresas brasileiras e em entidades brasileiras de direito privado sem fins lucrativos, mediante a concessão de recursos financeiros, humanos, materiais ou de infraestrutura a serem ajustados em instrumentos específicos e destinados a apoiar atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, para atender às prioridades das políticas industrial e tecnológica nacional” (conforme o “Art. 19” do artigo 2º da lei 13.243/16; destaques nossos).

Viés privado”
Joaquim Adelino de Azevedo Filho, presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), considera que o novo marco vai reduzir ainda mais os recursos públicos para o desenvolvimento de pesquisas com caráter público no Brasil. A APqC é uma das muitas entidades signatárias da carta encaminhada, em vão, à presidenta Dilma.
Ele acredita que a criação de “OS” irá se acentuar (bem como o repasse da gestão de órgãos públicos para essas instituições), o que ampliará a competição privada pelos recursos públicos. “Utilizarão recursos públicos e a estrutura pública, mas com viés privado”.

A empresa interessada na pesquisa poderá até investir algum recurso, “mas o fruto desse produto vai ser explorado só por essa empresa, e não por todos”. O pesquisador receia que, dessa forma, “os conhecimentos públicos passem a ser apropriados por alguns entes privados”.
O temor do presidente da APqC não é infundado. Basta ler algumas passagens da nova lei para entender isso. Como boa parte da lei 13.243/16 se compõe de mudanças na lei 10.973/2004, o “artigo 2º”, inciso XIV desta última passa a definir a expressão “capital intelectual” como “conhecimento acumulado pelo pessoal da organização, passível de aplicação em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação”; e o inciso III do “artigo 4º” passa a ter a seguinte redação: “permitir o uso de seu [da ICT pública] capital intelectual em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação” (destaques nossos).

Desse modo, a nova legislação, de modo escandaloso, coloca à disposição de grupos privados — sejam eles “Organizações Sociais”, fundações ditas “de apoio” ou empresas — o quadro permanente de funcionários públicos do setor de C&T.
Por um lado, permite que complementem seus salários através dessa atuação. Por outro lado, porém, os obriga a atender esse tipo de demanda, como se pode comprovar pela leitura da nova redação da lei 10.973/2004, §6º do “Artigo 6º”, como disposto no artigo 2º da lei 13.243/16 (destaques nossos): “Art. 6º É facultado à ICT pública celebrar contrato de transferência de tecnologia e de licenciamento para outorga de direito de uso ou de exploração de criação por ela desenvolvida isoladamente ou por meio de parceria. [...] § 6º Celebrado o contrato de que trata o caput, dirigentes, criadores ou quaisquer outros servidores, empregados ou prestadores de serviços são obrigados a repassar os conhecimentos e informações necessários à sua efetivação, sob pena de responsabilização administrativa, civil e penal [...].”

Portanto, mesmo que um determinado servidor público se recuse a “vender seu passe” para os interesses privados, poderá ser obrigado pela direção de sua respectiva ICT a “repassar os conhecimentos e informações” relativos a contrato de transferência de tecnologia celebrado com uma organização privada, e caso não o faça poderá sofrer processo administrativo, cível ou criminal!
“Eu trabalho pela sociedade, mas o governo está me empurrando para trabalhar pelo interesse privado: não me dá nem o aumento nem o valor justo pelo meu trabalho, e me incentiva a fazer essa migração”, sintetiza Azevedo Filho. No seu entender, haverá uma tendência de mudança de linha nas pesquisas, e a sociedade deixará de ter acesso a determinadas pesquisas antes existentes.
“Algumas áreas terão ingresso adicional de recursos, outras não. Isso vai criar uma diferença dentre os trabalhadores públicos e entre as linhas de pesquisa”. Com o tempo, o país tenderá a desenvolver principalmente projetos que possuam interesse financeiro. “O que diz respeito ao interesse social vai ficar em segundo plano”. Genaro, do SindCT, faz avaliação idêntica.

O que orienta a maior parte das instituições públicas hoje, na escolha das linhas de pesquisa, diz ele, é principalmente o interesse da sociedade — e não se vão gerar lucros. Agora, a partir do momento em que grupos de pesquisadores tendentes a uma aproximação com o “mercado” identificarem chances de ganho pecuniário em determinados projetos, isso vai promover mudanças nessas escolhas. “Não tenho dúvidas.
É claro como a luz do dia”, afirma. É o que já acontece nas universidades públicas federais e nas estaduais de São Paulo, por meio das fundações privadas “de apoio”.
Mercantilização
O professor Giovanni Frizzo, diretor do Sindicato Nacional dos Docentes nas Instituições de Ensino Superior (Andes- -SN), avalia que, com o novo marco legal, “os interesses privados de mercado é que vão determinar o que será produzido de ciência, tecnologia e inovação” nas instituições públicas.
Frizzo destaca que a legislação cria uma série de possibilidades de abertura das universidades e instituições públicas de ciência e de pesquisa à iniciativa privada, inserindo-se “no bojo da política do governo federal de mercantilização da educação e da pesquisa no país”.

O professor destaca que, desde o início da tramitação, o Andes-SN fez denúncias e questionamentos em relação ao projeto de lei, mas ele acabou sendo aprovado graças, sobretudo, à pressão exercida pela SBPC e ABC. Opinião que coincide com a de Genaro, para quem tais entidades assumiram “caráter totalmente liberal e privatista nas últimas gestões”.
Se dependesse somente delas, acrescentou, “todos os órgãos públicos de pesquisa no Brasil seriam transformados em OS”. Após a cerimônia de assinatura do projeto, a presidente da SBPC, Helena Nader, afirmou que o novo marco “é o início de uma nova fase para a pesquisa e inovação tecnológica no Brasil”. Frizzo aponta outro aspecto fundamental do novo marco, que é o de destacar em vários dispositivos a perspectiva da inovação.

“Trata-se de algo que coloca o país em uma escala mundial de produção de inovação, e não ciência e tecnologia na forma autônoma e necessária”, avalia. A inovação a ser buscada é pré- -determinada em âmbito mundial, o que subordina os interesses nacionais a uma agenda ditada no exterior, pelos países hegemônicos.
Além disso, possíveis contratos firmados entre as instituições públicas e a iniciativa privada, com vistas à utilização das universidades por interesses particulares, poderão ter graves consequências: “Resultado disso é que o conhecimento ali produzido deixa de ser público, inclusive com a iniciativa privada patenteando esse conhecimento em seu nome”.
Preocupação
Um ponto visto com especial preocupação pelo dirigente do Andes- -SN é o fato de que a nova legislação impacta a própria carreira docente.
“Por exemplo, as empresas podem pagar bolsas aos docentes, por diversos mecanismos”, observa. O aumento da carga horária máxima destinada a “pesquisa, extensão e inovação” (ou seja: atividades privadas remuneradas) é outra grande mudança, passando de 120 horas/ano para 416 horas/ano. Além disso, tanto as fundações privadas “de apoio” como as ICTs poderão remunerar seus dirigentes, mesmo que sejam professores em regime de dedicação exclusiva.

São medidas que minam o setor público, em benefício exclusivamente de grupos privados. Genaro, por sua vez, explica que o pesquisador dos institutos públicos poderá até dedicar integralmente suas 40 horas de jornada semanal para o setor privado, cabendo ao órgão liberá-lo ou não para a empreitada. “Para isso, basta que o dirigente máximo da instituição cedente entenda que tal cessão é de interesse da Administração.
O problema é que, como esta decisão muitas vezes é um ato discricionário do dirigente, ele poderá, de acordo com suas conveniências, favorecer alguns setores e ou servidores em detrimento de outros. Isso pode levar a disputas internas por projetos que rendam pagamento de maiores pró-labores, bem como ao esvaziamento de setores inteiros pelo afastamento de servidores para atuarem na iniciativa privada”, adverte.

Admitindo-se que o desenvolvimento da ciência e tecnologia se dá hoje em um mundo capitalista, não se pode ignorar que ocorram pesquisas voltadas para o lucro. “Mas é preciso separar a criação de uma patente, a criação de algo inovador buscando o lucro, do desenvolvimento de algo que o país necessita, da ciência básica”, comenta o diretor do SindCT.

Os defensores do novo marco legal sustentam que ele foi bem debatido, mas são contestados. Frizzo afirma que nunca houve consenso real em torno do então PLC 77/15, de forma que o Andes-SN desde o início posicionou-se contra o projeto. Para ele, a disputa de fundo gira em torno do projeto de educação e de sociedade desejados. A lei 13.243/16 reflete, assim, “uma visão empresarial que almeja a captação de recursos por qualquer via: a ‘solução’ diante da escassez de recursos é a da captação por qualquer mecanismo para assegurar os recursos de que a universidade precisa”.
Azevedo Filho ressalta que a proposta não foi discutida nas instituições de pesquisa paulistas (entre as quais se incluem o Instituto Agronômico de Campinas, Instituto Pasteur, Instituto Florestal, Instituto de Tecnologia de Alimentos etc.): “Fomos pegos de surpresa.

Quando vimos o projeto já estava indo para o Senado”, denuncia. “A SBPC diz que houve um amplo debate, mas isso se deu internamente, atendendo a interesse de pessoas da instituição”. A APqC irá acompanhar e estudar como o marco legal será implementado: “Há pontos que poderão nos levar a questionar a constitucionalidade e a legalidade da norma”.

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