quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Usando a ciência climática para combater a indústria da seca

Valor Econômico
Carlos Nobre*
30 de janeiro de 2017



A região semiárida do Nordeste vem enfrentando a mais longa e drástica seca de sua história: cinco anos consecutivos de chuvas deficientes e perspectivas de seca em 2017, ainda que sem a intensidade das secas de 2012, 2013 e 2016.

A ciência ainda debate se esta sequência de anos secos poderia ser uma manifestação do aquecimento global, que projeta um Nordeste com menos chuva e maior frequência de extremos climáticos.

Ao contrário do que ocorria no passado, este longo período não resultou em migração em massa de retirantes da seca, e assaltos a armazéns e caminhões transportando alimentos. O que mudou? A "indústria da seca" desapareceu?

A indústria da seca sempre prosperou na ignorância, sujeita ao histórico coronelismo presente no Nordeste (e em todo Brasil). Em anos de grandes secas, recursos públicos de apoio aos afetados eram sistematicamente surrupiados por elites políticas locais, transformando a comoção social causada pelas secas em fonte de poder político e ganhos privados.

Muito desta ignorância se alimentava historicamente da imprevisibilidade das secas, tradicionalmente ligada à religiosidade dos sertanejos de aceitação passiva de que grandes secas seriam "desígnios divinos".

A ciência climática evoluiu grandemente nas últimas décadas. Secas do Nordeste são fenômenos naturais ligados à circulação global da atmosfera com suas interações com os oceanos tropicais. Quando há um episódio intenso do fenômeno El Niño no Oceano Pacífico equatorial, este induz a secas no semiárido. O mesmo ocorre quando o Oceano Atlântico Tropical ao norte do Equador está muito quente.

O entendimento das causas subjacentes às secas do Nordeste tem permitido se prever com antecedência de alguns meses a probabilidade de uma particular estação de chuvas do semiárido do Nordeste de fevereiro a maio ser deficiente, normal ou abundante. Estas previsões climáticas vêm sendo aperfeiçoadas ao longo do tempo e utilizadas para apoio ao planejamento agrícola, à gestão hídrica e à mitigação de desastres naturais.

A indústria da seca tem sido combatida em duas frentes: a liderada pelo Ministério Público (MP), que processa prefeitos e outros políticos e gestores públicos por desvio de recursos emergenciais, o que resulta em mandatos cassados pela Justiça.



E a segunda frente, da ciência. Desde a intensa seca de 2012 e, pela primeira vez de forma sistemática, as ações de mitigação dos governos federal e estaduais foram guiadas pela melhor informação científica fornecida por organizações de pesquisa federais e estaduais, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), a área de pesquisa da Agência Nacional das Águas (ANA), entre muitas outras. Estas ações canalizam recursos de mitigação para as áreas criticamente atingidas em ações focalizadas como transferência de renda, fornecimento de água e apoio à agricultura de subsistência.

Estes programas custaram mais de R$ 40 bilhões aos cofres públicos de 2012 até hoje, mas criaram a necessária rede de proteção social para mais de 10 milhões de habitantes rurais e urbanos em todo Nordeste.

Os impactos de cinco anos de secas consecutivas já são devastadores. O nível de reserva hídrica dos médios e grandes açudes, que abastecem grandes e médias cidades, como Fortaleza e Campina Grande, e fornecem água para os carros-pipa, estão em seu mais baixo índice histórico: decaíram de 67,1% de sua capacidade em janeiro de 2012 para 15,6% em meados de janeiro de 2017. No Ceará, Pernambuco e Paraíba, estão abaixo de 9%, segundo monitoramento da ANA.

O Grupo de Trabalho em Previsão Climática Sazonal do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), em sua recente previsão de chuvas de fevereiro a maio para o Norte do Nordeste, continuou a apontar risco de chuvas abaixo da média histórica. 

Mesmo no caso de as chuvas atingirem valores médios históricos, a recuperação do armazenamento de água será irrisória e projeta-se que a grande maioria destes médios e grandes açudes poderá de fato secar até o início do próximo ano, trazendo em seu bojo uma crise humanitária sem precedentes recentes para milhões de nordestinos. A manutenção dos programas emergenciais é mandatória e provavelmente será necessário expandi-los, se as chuvas forem insuficientes para manter um mínimo de produção agrícola de subsistência e de recarga dos açudes.

O cenário que se desenha com as mudanças climáticas coloca uma grande questão no ar: como desenvolver a região semiárida de forma sustentável e inclusiva, quebrando o ciclo de somente atuar através de programas emergenciais? A agricultura familiar não irrigada visando a subsistência de milhões de nordestinos é cada vez mais inviável.

O que poderia ser uma economia regional baseada em recursos naturais renováveis? O Nordeste tem um enorme potencial de energia eólica e solar, capaz de atender a todas suas necessidades e ainda exportar grandes volumes para o restante do Brasil. Estas formas de energia renovável distribuídas geram empregos permanentes localmente, mais numerosos do que aqueles gerados por hidrelétricas ou termelétricas e que poderiam beneficiar populações urbanas e rurais da região.

Os locais com grande potencial para energia eólica cobrem uma pequena fração de todo Nordeste, ainda que possam gerar centenas de gigawatts de energia com as tecnologias atuais de torres de mais de 100 metros de altura. Desta maneira, a capacidade de geração de empregos pela implantação em grande escala destes projetos está longe de poder absorver grandes contingentes daqueles que hoje se dedicam à agricultura de subsistência, ainda que políticas públicas devam propiciar a equitativa repartição de benefícios aos agricultores e municípios onde as torres eólicas ou, no futuro, as usinas solares estejam sendo implantadas.

Seria a fração desta riqueza econômica que permanecesse no semiárido suficiente para impulsionar a economia regional, inclusive uma agricultura sustentável no semiárido, com uso de tecnologias apropriadas? Esta é uma questão a ser ainda respondida.

Qualquer que seja a solução de desenvolvimento sustentável para o Nordeste, esta não pode coexistir com a indústria da seca, que não acabou, mas claramente perdeu força. Seu desaparecimento se concretizará quando surgir um novo padrão ético na política nacional, algo bem mais difícil de prever do que prever as secas do Nordeste.

* Carlos Nobre é climatologista, professor de pós-graduação do INPE, pesquisador colaborador do Cemaden e membro da Academia Brasileira de Ciências.

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